segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Cruzamento entre público e privado põe ética de lado e abre caminho para a corrupção



Publicada em 28/08/2011 às 01h27m
Carolina Benevides (carolina.benevides@oglobo.com.br) e Silvia Amorim (silvia.amorim@sp.oglobo.com.br)
RIO - Instrumentos legítimos do processo democrático estão tendo o uso deturpado para servir à corrupção. Essa é a constatação a que muitos estudiosos chegaram após analisar práticas cotidianas da vida política, como o lobby, emendas parlamentares e doações para campanhas eleitorais. Se isso não bastasse, políticos pegando carona em jatinhos de empresas que têm relação com o governo e dossiês que propagam suposições como verdades têm se transformado em práticas corriqueiras.
Conheça melhor cada uma destas atividades e saiba o que pensam especialistas.

LOBBY
O lobby é uma atividade legítima em diversos países, mas no Brasil é muito associado à corrupção. Nos mais recentes escândalos no governo federal lobistas apareceram entre os suspeitos de desvios de recursos. Eles davam expediente em ministérios sem ter cargos e tinham como principal função defender de forma suspeita interesses de terceiros, seja uma empresa ou um político.
Uma das razões para essa relação estreita entre lobby e corrupção, dizem estudiosos, é a falta de regulamentação da atividade, garantida na Constituição. Há 20 anos, tentativas de normatizar o lobby aguardam definição do Congresso.
- O lobby é uma atividade como outra qualquer. Qualquer grupo de interesse pode marcar uma reunião com um tomador de decisão e apresentar seus pontos de vista. Mas, como em toda área, tem o lobby bom e o corrupto - explica o professor de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) Wagner Pralon Mancuso.
Com a regulamentação, o lobista seria obrigado a se registrar no órgão governamental de interesse, informar quem é o seu contratante e os temas que quer tratar. A professora de Direito Constitucional da Faculdade Especializada em Direito (Fadisp) Samantha Pflug defende que uma maior transparência à atividade deixaria mais expostos aqueles que agem de forma ilícita.
- Além disso, ela é uma medida de proteção do próprio agente público que fica resguardado - afirma.
Está marcada para a próxima quarta-feira uma audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara para discutir projeto de lei que disciplina o lobby no Executivo federal.

EMENDAS PARLAMENTARES
Esse é outro instrumento legítimo numa democracia e que tem tido o uso deturpado. O assunto já foi alvo de um estudo acadêmico que constatou uma estreita relação entre emendas parlamentares e corrupção. Após análises de relatórios da Controladoria Geral da União (CGU), uma analista do órgão e autora do estudo, Maria Fernanda Colaço Alves, constatou que o número de irregularidades administrativas encontradas em prefeituras estava associado ao repasse de recursos por emendas.
- Um caminho natural para buscar uma redução da corrupção por meio das emendas parlamentares não é a extinção delas. São instrumentos que fazem parte do processo democrático. Precisamos fortalecer os níveis de controle do uso desses recursos que são muito frágeis, seja no âmbito federal como no municipal - disse Maria Fernanda.
Pelas regras atuais cada deputado federal pode indicar emendas num total de R$ 12,5 milhões por ano.
O deputado federal Alceu Moreira (PSDB-RS) é um dos poucos no Congresso a falar abertamente sobre o problema. Para ele, o governo tem parcela de culpa.
- Os governos têm feito o exercício do poder pelo pagamento. Todo parlamentar sabe que se for contra o governo em qualquer discussão coloca em risco a liberação de verbas para suas emendas. É uma corrupção oficializada. E o problema está no sistema. Parte da solução está na reforma política - afirmou Moreira.

ENRIQUECIMENTO DO AGENTE PÚBLICO
A regra é clara. O agente público tem que disponibilizar a sua declaração de bens anualmente ao governo para que seja feito um controle sobre o aumento patrimonial do servidor. O objetivo é identificar casos de enriquecimento ilícito, quando o patrimônio é incompatível com a renda. Mas, na prática, essa fiscalização não existe. A constatação é de um trabalho acadêmico que foi premiado pela Controladoria Geral da União (CGU), um dos órgãos responsáveis por fazer esse controle. O autor da pesquisa é o auditor fiscal e delegado da Receita Federal Marco Aurélio de Oliveira Barbosa.
- Quando a CGU ou o TCU vai fazer uma auditoria no órgão, eu constatei que seles perguntam se está sendo exigida a declaração do servidor e, se sim, isso já satisfaz. O objetivo que seria analisar o conteúdo da declaração para saber se houve enriquecimento ilícito não é feito. É aquela história para inglês ver - diz Barbosa.
Segundo ele, somente há fiscalização quando surgem denúncias. Há um projeto de lei no Senado, desde 1995, que transfere para a Receita Federal a atribuição de fazer essa fiscalização. Em 2002, o governo tentou fazer isso por medida provisória, mas o Congresso derrubou o artigo que estipulava a alteração.
Outra discussão atual sobre o tema é a inclusão do enriquecimento ilícito como crime. Há projetos em tramitação, embora a passos lentos, que prevêem essa mudança. Hoje ele é apenas um ato de improbidade administrativa.
Barbosa propõe em seu estudo que, além da declaração de bens, o agente público seja obrigado a liberar seu sigilo bancário para fiscalização.

DOAÇÃO DE EMPRESAS A CAMPANHAS ELEITORAIS
Doações milionárias de empresas com contratos junto à administração pública para campanhas eleitorais estão sendo questionadas quanto à sua constitucionalidade. Diante de inúmeros indícios de corrupção, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) decidiu na semana passada que vai entrar no Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de inconstitucionalidade pedindo o fim das doações por empresas que trabalham para o governo. O argumento é a prática "compromete o processo democrático, promove a desigualdade política e alimenta a corrupção".
Autor de uma pesquisa sobre objetivos e estratégias do setor privado no financiamento das campanhas eleitorais, o cientista político da Universidade de Campinas (Unicamp) Bruno Wilhelm Speck dá seu veredito:
- Constatamos que aquelas empresas que têm maior relação com o estado doam mais. Então, em princípio, há uma suspeita muito grande de que isso ocorra por causa dos contratos - explica Speck.
Ele defende o estabelecimento de um limite "realista" para doações por empresas e pessoas físicas.

CONTRATAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO PELA INICIATIVA PRIVADA
O assédio do setor privado para contratação de funcionários públicos licenciados ou egressos dos cargos no governo começa a chamar a atenção da Comissão de Ética Pública da Presidência e do meio acadêmico. Não existem estatísticas do fenômeno no Brasil, mas, independentemente da dimensão do problema, o impacto é certamente lesivo ao poder público. Nem sempre se trata de corrupção, mas governo e sociedade perdem.
- As regras no Brasil são muito frágeis, apesar de parecerem muito simpáticas. Por exemplo, há a quarentena de quatro meses, mas isso é absolutamente insuficiente para lidar com o problema maior, que é a mobilização dos grupos de interesses. Acaba tendo um efeito perverso, uma espécie de carta de alforria, de inoculação - diz o professor de políticas públicas da Ebape/FGV e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio, Jorge Vianna Monteiro.
Os salários, em geral, são mais altos na iniciativa privada, que valoriza nesses agentes públicos a rede de contatos que deixou no governo e o conhecimento das engrenagens burocráticas.
- Isso não deve ser enquadrado como corrupção, mas é preciso ter regulamentação adequada - afirma Monteiro.
Fonte: Jornal O Globo